Coisas do coração
O que muda com o passar dos anos não é o que os médicos dizem pra gente, mas o tipo de médico que diz determinadas coisas pra gente. Quando o cardiologista me mandou fazer exercícios físicos, não tive escolha a não ser ir, até porque não tenho dignidade para debater sobre as coisas do coração, ainda mais com alguém portando um estetoscópio e me ameaçando com um aparelho de medir pressão.
Desenterrei a raquete do fundo do armário e marquei uma aula teste. É assim que eles chamam o experimento social que submete seres humanos que não se conhecem a um convívio de cinquenta minutos que envolve bolinhas amarelas, uma rede e tentativas de capturar o ar por meio de um aro cheio de furinhos e uma haste emborrachada para ao final decretarem um diagnóstico de desempenho que me colocou num nível que não tenho nem entre meus familiares mais queridos: intermediário? certeza?
Desenvoltura eu sempre tive, não posso negar. Que o digam os taxistas de Buenos Aires, com quem já travei dezenas de debates sobre política, cultura, economia, Darín, desenvolvimento sustentável e vinho. Todo resto, vá lá. Mas uma pessoa que se habilita a discutir sobre vinho com um argentino ao volante é no mínimo irresponsável, mas gosto de colocar na conta da desenvoltura, mesmo tendo como background um espanhol que aprendi no colegial repetindo coisas como no, maestra, no hace esto, por dios momentos antes de ser retirada da classe.
Reputo, portanto, à esta desenvoltura e a uma certa inspiração que no dia da aula teste me tomaram pelo braço e caminharam comigo pela quadra. Caminharam, não, flanaram, porque naquela manhã nem o sol brilhava tanto quanto eu, nem com tamanha elegância, mesmo em seu estado mais contemplativo lá na mureta da Urca, ainda mais se fosse impelido a se arremessar sobre a bola tal qual eu fazia, empreendendo movimentos rápidos e certeiros. Quase sem tocar os pés no chão, golpeava aquela circunferência com uma delicadeza que tanto me faltou nas aulas de balé, mas que ali faziam os mais desatentos entortarem o pescoço para assistirem àquele bamboleio de pernas, ligeiramente comprimidas num shorts que se apequenou com o passar dos anos, assim como meus pares o fizeram diante de tanto talento. Intermediário só para você ir aquecendo, o professor cravou ao final do teste para logo depois querer entender meu percurso naquele esporte que tanto eu dominava.
Na semana seguinte, altiva, entrei em quadra dando pequenos impulsos com a raquete no ar, numa espécie de mantra que tentava evocar a Serena Williams da aula anterior. O sol brilhava menos naquele dia. Não aquele que provocava gotas espessas que escorriam pela testa das pessoas, mas o meu, certamente, e depois de seis ou sete bolas seguidas na rede comecei a ajeitar nervosamente as cordas considerando ser um problema da raquete - a poeira e o desuso poderiam ter afetado meu instrumento. Mas depois da terceira tentativa, depois da terceira raquete, percebi que não era ela quem tinha me abandonado, mas a desenvoltura. Ela, que tanto havia me amparado no pátio da escola, entre adolescentes perversos, em fins de relacionamentos, e o que dizer da vida profissional, mas por razões que não saberia dizer havia tomado seu rumo e escolhera justo aquela manhã para buscar refúgio em outros braços. Talvez no de uma moça com shorts menos justo, já um tanto desacreditada na vida, às margens do Tejo, ou quem sabe de um peruano maltratado por brigas conjugais numa praça de Lima, mas o fato é que a mim a desenvoltura não amparava mais, me relegando à própria sorte entre esportistas num campo de terra batida.
Tivesse eu algum alinhamento com os astros ou mesmo uma mínima afinidade com versículos bíblicos poderia buscar nas cartas ou no livro sagrado uma explicação para o que se sucedeu, mas por falta de repertório e excesso de ceticismo me resta apelar ao linguajar dos menos nobres para dizer que uma série de eventos infelizes ocorreram em cadeia. Como uma peça de dominó que é desastrosamente impulsionada entrando em contato com outra peça fielmente disposta ao seu lado e assim sucessivas vezes começando por um professor cuja fala estava comprometida, talvez por uma bola que eu mesma tenha arremessado dentro da sua boca, me impedindo de entender seus pedidos, clamores em certa altura, porque a mim só chegavam as últimas palavras de cada frase e, por isso, eu balançava a cabeça em sentido afirmativo, mas fazendo o que deveria ser o oposto, dada as suas reações exageradas.
E num determinado momento cheguei a ouvi-lo dizer repetidas vezes baixaria, baixaria, baixaria, e pensei isso aqui pode, finalmente, ficar divertido, mas percebi depois, logo depois, que era parceria, par-ce-ri-a que ele falava e notei isso pelo desconsolo da moça ao meu lado, minha dupla, que pouco havia encostado na bola, até porque ela se recusava a interagir com outra pessoa depois que chegava em mim, a não ser com a rede ou com a quadra.
E num lance que me fez acreditar que ela poderia ter voltado, não a moça, a minha dupla, que deixou a quadra antes da primeira meia hora de aula, mas a desenvoltura, que cheguei a supor que pudesse ter me tomado novamente de assalto, como tanto fazem comigo no centro da cidade, depois de um golpe certeiro de esquerda, uma paralela brilhante, que fez o professor gritar a esquerda tá indo bem, a esquerda tá indo muito bem, e que me encheu de confiança me fazendo dizer também alto, bem alto, é igual o Brasil, tá igual o Brasil, mas ninguém, nem mesmo o professor, riu ou esboçou uma tentativa de riso. Com isso, eu lidaria sem problemas, mas o efeito foi bem pior, muito pior até que minhas tentativas de saque que tanto atingiram a moça e o moço que estavam do outro lado da rede, e talvez eu tivesse que supor que não se tratava dos mais progressistas dos ambientes, uma quadra de tênis na zona oeste, mas daí a ser rebaixada me pareceu um tanto arbitrário.
Foi isso o que me disse o professor, num ímpeto, como um raio de sol que empina no oceano apontando a beleza do infinito, me despejou secamente: iniciante. Quem?, cheguei a perguntar, e ele esclareceu que era eu, que eu deveria voltar para o nível iniciante para recuperar algumas técnicas e eu pensava todas?, mas respondi que concordava, como se ele tivesse me feito uma pergunta, claro, iniciante, e tentei bater na mão dos colegas agradecendo aquela baixaria, mas na hora consegui me corrigir e dizer parceria, mas eles já caminhavam cabisbaixos deixando a quadra e talvez o desejo de voltar a jogar tênis algum dia ou mesmo de admirar pássaros nos parques ou de amar seus cônjuges e filhos e quiçá regar suas plantas e reciclar seus potes de maionese, deixando-se levar novamente pelo torpor do cigarro após o café, pelo regozijo dos vinhos abertos despretensiosamente no meio da semana, pelo carboidrato que acalenta o espírito e nobilita o caráter, pelas compulsões, estas sim, que tão bem fazem ao coração.
APAGAR PARA TODOS.