Eu te conheço de algum lugar
Um estudo divulgado há poucos dias descobriu que todos nós temos um sósia no mundo e que provavelmente ele partilha também do nosso DNA. Isso pode ter surpreendido os cientistas e talvez a dona Marlene, minha vizinha do segundo andar que tem cinco dedos no pé direito e três mamilos, mas pra mim não trouxe nada de novo. Eu contava isso para uma amiga quando uma moça, entrando no prédio, tocou meu braço meio constrangida para perguntar se eu era irmã da Shirley. Não, não, eu tentava explicar enquanto ela ligava de vídeo para uma prima olha, olha, não é a cara da Zoneide?, vira assim pra ela ver, o mesmo cabelo e tudo, ahahahaha, tem certeza que não é irmã dela mesmo? a Shirley que trabalhava com empada lá perto do Cachoeirinha, sabe?
A cena se repete aos borbotões. Na feira, na padaria, em lojas de ferragens, festas caretas, bizarras, batizados, casamentos, no farol, em centro espírita, reunião de condomínio e até em lugares que eu não estou. A minha mãe viu uma foto nossa e perguntou se você não era de Maringá, porque ela tem uma amiga que mora lá e que a filha é a sua cara, me escreveu outro dia uma menina que trabalha comigo. Não acho que meu pai tenha sido um santo, mas há limites, inclusive territoriais, eu respondi.
Com o advento da pandemia e do isolamento social, pensei que ficaria livre disso pelo menos naquele período, mas com os encontros virtuais passei a contar também com print de tela: eu pre-ci-so mandar sua foto pra minha tia, assim, assim, mas fica parada se não vai sair tudo borrado, isso, dá um sorriso só pra garantir, você é igual a vizinha dela, sério.
Estava lendo que há fatores determinantes que fazem com que uma pessoa se pareça com a outra, como convivência e até semelhança de personalidade. Mas isso não faz nenhum sentido, porque se todos as sósias que me atribuem tivessem a minha falta de paciência, entre outros atributos, esse mundo já teria virado um grande coliseu romano e agora estaríamos tentando conter enormes labaredas.
Pode parecer que o pior dessa situação é ter que explicar que nunca toquei na banda de uma igreja, só dancei lambada aos seis anos e jamais fui casada com um moço chamado Milton. E nem com qualquer outro moço, de qualquer outro nome. Mas o que me incomoda mesmo é não saber como é a pessoa que se parece comigo, por mais absurda que essa questão possa parecer. É tanta semelhança que fica totalmente inverossímil.
Outro dia, entrando num bar, a mulher da portaria gritou Andreeeeiaaa, não sabia que você vinha hoje. Olhei pra trás procurando a moça, mas a hostess insistiu: você não é a Andréia? Sou, mas fiz isso para fingir que não te reconheci e evitar essa conversa absurda que estamos tendo, eu tive vontade de falar, mas acabei explicando que tinha outro nome e que essa coisa de eu parecer com alguém era super comum e, falando nisso, como é a Andréia, moça? Igual a você eheheheheeh, ela respondeu enquanto me dava uma comanda com o nome errado.
Passei a noite desejando encontrar a Andréia, que eu torcia para ser uma deusa, mas que poderia não ter os dentes da frente, o que acabaria com a minha autoestima já super comprometida. Apareceu, eu perguntei umas horas depois para a moça da recepção. A Andréia, apareceu? Você é uma figura, Déia, ela me respondeu descendo até o chão ao som de Anitta.
Eu passo por mentirosa, mas também por mal educada. Te vi no mercado da Lapa, te chamei umas cinco vezes, você olhou e virou a cara, me digitou o Beto há uns meses. Quando foi isso, amigo?, não vou lá tem anos. No sábado, ele continuou. E ainda estava usando chapéu rs. Acho que foi por isso que não quis falar comigo. Beto, eu só uso chapéu em festa de peão e como nunca fui a uma festa de peão eu não uso chapéu. Ah, e no sábado estava fora de São Paulo, eu disse para ele me responder com uma figurinha e alguma coisa como: grossa!
Já lancei mão de algumas estratégias, como entrar de óculos escuro nos estabelecimentos, mas aí o "eu te conheço de algum lugar" é substituído por "você trabalha em algum programa de rádio?, porque essa voz eu já ouvi, hein". Deve ser cármico, eu dizia para minha analista, que não acredita em Deus e muito menos em vida após a morte, porque não é possível não conseguir comprar calcinha sem ter que explicar em que bairro nasci e que não tenho nenhum tio carpinteiro dos bons chamado Jair.
E não é modo de dizer. Não faz nem um mês e eu estava com três calcinhas na mão, testando o elástico da cintura e mostrando pra vendedora que não podia marcar aqui ó, fui falando e levantando a blusa, mas ela já estava a metros de distância, puxando pelo braço a Roberta, da sessão de sutiãs, pra perguntar se eu era ou não era a cópia escarrada da Estela. Vê bem, não é? Larguei as peças em cima do balcão e disse que não podia ser, porque tinha mudado de sexo há poucos dias e que estava muito mal com tudo isso e ela foi se desculpando e me oferecendo uma cinta modeladora, mas eu já estava no estacionamento e sem calcinha.
Mas de todas as situações nada foi pior do que na última semana. Primeiro dia do curso, aquela rodada de fale seu nome, o que você espera dessa aula e se for votar no Bolsonaro pode ir embora, sabe? Ao final da minha apresentação, a professora me olha e pergunta: você fez curso de cinema no AIC, né?
Eu sei que minha franja não ajuda, mas não é possível que até aqui isso vai acontecer, eu pensava enquanto já dizia que não, não, apesar de achar curso de cinema bacana e tal, mas que ela devia me conhecer de algum lugar, né?, porque é sempre assim e blá, blá, blá, e eu quis ser simpática e disse que tinha uma beleza comum, ahahahaha, mesmo ninguém da sala rindo, porque era a primeira aula e eram todos estranhos e estavam cansados, por isso, não sabiam se eu estava sendo presunçosa, irônica ou só idiota mesmo ou os três, o que seria o mais adequado de se supor, e ficou um clima meio estranho e a professora se desculpou pela confusão e horas depois conversando com uma amiga a gente lembrou que não só a conhecia, como ela era a ex-mulher do cara que minha amiga estava agora e por quem ele tinha largado a professora e era óbvio que aquele curso nem fazia sentido, né?, e achei melhor trancar a matrícula e investir o dinheiro em uma harmonização facial e uma passagem só de ida para o Japão, onde ninguém vai poder dizer que me conhece de algum lugar.
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Eu me lembrei daquele episódio do Friends em que o Joey descobre que tem um gêmeo de mão que trabalha em um cassino. Ele fica fissurado que o cara tem as mãos iguais a dele. Hahahahaha.
Falando sério, já encontrei sósias por aí. Uma delas foi colega de faculdade - todo mundo nos achava parecidas, menos nós. Um colega com quem fazia um trabalho se espreguiçou e, quando olhou para trás, tomou um susto. Como é que eu, que estava na frente dele, de repente estava atrás também olhando para ele? Só então, depois de alguns semestres, ele descobriu que nós éramos duas pessoas iguais, mas diferentes. Hahahahhah