O mais novo
Olhando pro teto de boca aberta ouvi ela dizer se vamos mexer nesse, melhor mexer no outro. Que outro, eu perguntei. O do meio, que tá lascado, sabe? De jeito nenhum, eu falei. Tá sim, você não sente quando passa a língua? Sim, eu sinto mas não vamos mexer nisso, esquece ele. Não dói, é só restauração de resina, eu parcelo pra você, ela insistia. Ofuscada pela luz branca do consultório e pelo barulho daquela mangueirinha secando minha alma lembrei do meu corpo dobrado no meio do quintal, três décadas antes, minhas duas mãos tapando minha boca e ele ao lado gritando desesperado desculpa, foi sem querer, desculpa e, apesar do susto, do medo de ter perdido os dois incisivos reuni forças pra dizer você é um idiota desastrado.
A gente tinha instalado uma cesta nova de basquete. Nem muito alta nem muito baixa. Em dias ensolarados, o porcelanato meio desconjuntado se prestava a receber uma misturinha de água com sabão em pó sobre a qual nos lançávamos desajeitados, deixando invariavelmente um tampão de joelho aqui e outro ali, mas quase sempre o quintal era mesmo uma arena poliesportiva. Naquela manhã, o duelo era entre dois gigantes da NBA, uma final disputadíssima, um estádio lotado, nervos à flor da pele. Par. Ímpar. A bola começou com ele. Mais baixo do que eu, era frequentemente interceptado para o delírio de torcedores insandecidos. Chupa, eu provocava. Você não sabe jogar isso.
O placar corria solto. Eu acenava feliz para uma horda invisível de apoiadores fanáticos, enquanto ele se irritava dizendo para de me provocar e joga, que saco. Já entrávamos no final do segundo tempo. Uma virada àquela altura seria impensável e ele sabia disso, mas insistia em atingir o garrafão para uma enterrada que ele imaginava entraria para os anais do basquete amador da Mooca, mas que eu sempre frustrava na metade do caminho. A quatro ou cinco pontos do final da partida ele conseguiu se desvencilhar de mim, deu um, dois, três passos e saltou, deixando para trás o braço e o cotovelo esquerdo, que atingiu em cheio minha boca. Caí no chão na hora, segurando todos os dentes que, supunha, estavam prestes a se despedir da minha arcada, mas o que soltou foi só o pedacinho de um deles e um pouco de sangue da gengiva. Ele não sabia o que fazer.
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Nosso videogame ficava instalado na TV da sala. Um fio carcomido por um demônio branco que atendia pela alcunha de Scooby cruzava uma parte do espaço do armário até o sofá. A falta de tomadas, uma marca registrada de todas as obras que tiveram a coordenação do meu pai, fazia com que os jogos acabassem antes, quase sempre na última fase, a segundos de aniquilarmos o chefão e zerarmos o jogo, que, claro, na década de noventa não ficava salvo na memória do aparelho. Só na de quem assistia à partida. Num desses dias, o cão diabo de pelo branco atravessou o cômodo com uma almofada na boca, levando com ele o fio, o videogame e meia dúzia de enfeites que minha mãe insistia em cultivar por ali. Perdeu, a gente gritou. Mentira, vocês viram que eu ia ganhar, estava quase, era só mais um soco e ele morria. Perdeu, a gente repetia rindo, eu e o mais velho, enquanto umas lágrimas grossas pingavam do rosto dele dizendo que ia falar com a minha mãe, que era sempre assim, e quando esse tipo de coisa acontecia, quando ele apelava, a gente respondia dizendo não fala nada, você sabe que ela fica triste, depois que pegou você no lixo ela não gosta de te ver chateado e ele chorava ainda mais repetindo ela não me pegou no lixo, é mentira de vocês.
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Ele ia sempre no meio. Mas não reclamava. Gostava de se espichar por entre os bancos da frente e ficar falando bem perto dos ouvidos do motorista e de quem estivesse ao lado. Pra garantir que estava mesmo sendo ouvido. Em tempos em que cinto de segurança era artefato de decoração automotiva, a gente seguia assim, tentando irritá-lo, dizendo você vai no meio, não adianta reclamar e ele dava de ombros e continuava falando e falando até algum adulto dizer agora chega, senta lá atrás, senta, e a gente ria baixinho.
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Eu vou pedir só mais uma vez, eu falava. Não vou, eu já disse. Na terceira negativa, seja lá qual fosse o pedido, a folga da vez, eu chamava o mais velho pra dizer não vai ter jeito vamos ter que fazer de novo. Um ia segurando os braços e o outro as pernas. Ele se debatendo, me solta, eu vou contar pra mamãe. No banheiro, já com a tampa da privada aberta ele tentava recuar, eu faço o que vocês quiserem, juro, mas aí já era tarde e a gente ficava dando descarga com a cabeça dele já bem perto da água e dizendo promete que não vai fazer de novo, prometo, prometo, eu juro, e só então a gente puxava ele de volta, que saía dizendo que odiava ser o mais novo.
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Quando meu pai parava no posto pra abastecer, eu colocava o nariz bem perto da janela dele, com o corpo todo esticado pra frente, pra sentir o cheiro da gasolina. Isso faz mal, minha mãe dizia, sem saber que aquilo era oxigênio puro para um par de pulmões que seria bronzeado por 28 anos com nicotina das bravas. Um deles, comigo no banco de trás, sempre reclamava pedindo pra fechar o vidro, dando início a um debate que só terminava com meu pai esmurrando delicadamente o console do carro e mandando parar com a gritaria. O outro, assim como eu, queria sorver cada molécula daquela substância proibida com o sobe som da minha mãe excomungando a nossa prática. Não tem uma vez sequer que eu não pense nisso ao entrar num posto de gasolina, que pra mim tem cheiro de infância, de briga de irmão. Por mais que me esforce, não consigo lembrar qual dos dois reclamava do cheiro e qual dos dois era meu cúmplice nessa empreitada. Mas não importa, na minha história é com o mais novo que me aboleto com a cara bem perto do vidro, nossas cabeças quase do lado de fora, uma brisa que bate com o carro parado, ele rindo, eu dizendo ri baixo, minha mãe reclamando, minha mãe reclamando.
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No dia do basquete, a gente ficou um tempão procurando o pedaço do dente que caiu. Se você achar te dou um boneco do Comandos em Ação, eu dizia. Mas ninguém achou. Passamos dias criando teorias do que teria acontecido com ele até que a gente decidiu que foi o Scooby, foi ele que comeu o pedaço do meu dente e demos o assunto por encerrado. Esquece isso. Tem coisas que não dá pra restaurar, eu falei pra dentista trinta anos depois antes de sair do consultório.